Uma luta dramática ...que pode mudar a vida de todos

Texto de Dom Filippo Santoro, Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro, publicado no Jornal Testemunho de Fé de 28 de março de 2004.

 

Uma cena do filme de Mel GibsonAssisti ao filme, a Paixão de Mel Gibson, durante a reunião do Conselho Permanente da CNBB, em Brasília. O filme, de grande impacto, nos coloca diante da Paixão de Cristo de uma forma muito intensa e dramática. Quando pensamos na Paixão de Cristo, a imaginamos, muitas vezes, como uma coisa distante, sentimental e idealiza­da; este filme nos mostra, pelo contrário, o sofrimento de Cristo em toda a sua dureza e crueldade. Trata-se de uma for­ma moderna de fazer o que os pintores da idade média, da idade moderna, faziam com Jesus. Eles O representavam segundo os meios que tinham naquela época, este filme o faz através da arte cinematográfica dominada de forma magistral.

O aspecto que sobressai é o impacto da dor, que choca mesmo com a experiência do sangue derramado pelo Senhor, a partir da tentação no Horto das Oliveiras, depois a flagelação, a coroação de espinhos, a via-sacra e a morte na cruz.

Este aspecto muito forte pode nos deixar perder passagens extremamente bonitas e de grande intensidade; personagens como, por exemplo, Nossa Senhora, Madalena, Verônica, Cláudia, Pedro, João, o Cirineu. Cada um deles é descrito com grande habilidade.

O filme começa com uma citação de Isaías que descreve o Servo de Javé sofredor, e, a um certo ponto, o tentador diz, querendo fazer Jesus desistir de sua missão: “como pode um homem sozinho carregar um fardo tão pesado?”, entendendo o pecado do mundo inteiro, o pecado de todos os homens. E o satã insinua: “desista, não é possível carregar um sofrimento tão pesado”. E, enquanto Jesus reza “Pai afasta de mim este cálice”, da figura misteriosa e enigmática do mal sai uma cobra, uma serpente, sinal da grande tentação; mas Jesus logo acrescenta: “Não a minha vontade seja feita, mas a sua”, e se abandona nas mãos do Pai. E, de repente, com muita firmeza, pisa na cabeça da cobra. A tentação é superada. Todo o filme será a luta contra o mal do mundo, que é algo muito maior e mais dramático que atribuir a culpa a judeus ou romanos ou à traição de Judas. Estamos diante do mistério da iniqüidade que Jesus carrega no seu corpo e na sua alma para a redenção de todos.

Pessoalmente, como Bispo auxiliar, participo algumas vezes de uma experiência bonita da nossa Arquidiocese no campo do Diálogo Inter-religioso, chamada Fraternidade Cristã-Judaica. Entendo que os nossos irmãos israelitas possam ficar desapontados pela forma como são apresentados muitos dos chefes judeus. Mas o diretor eliminou ce­nas de caráter antijudaico e, a meu parecer, o filme evidencia o fato de que a luta entre o bem e o mal, que está na origem da Paixão de Cristo, foi causada pelos pecados de todos os homens, de todos os tempos: “O senhor fez cair sobre Ele o peso dos pecados de todos nós’ (Is 53,6).

É claro que aparecem os fariseus, que levam Jesus a Pilatos, para que seja condenado, porém não é acusado o povo judaico no seu conjunto, porque deste povo faz parte Jesus, Nossa Senhora, São Pedro, São João, Simão de Cirene, a Verônica, etc.... A figura mais intensa e positiva do filme, depois de Jesus, é Maria, que é representada por uma atriz judia com uma simplicidade e intensidade incomparáveis.

Uma cena muito prolongada é a flagelação à qual Pilatos submete Jesus, mesmo afirmando que é inocente. A carne do Filho de Deus é dilacerada entre fustigadas e flagelos até os próprios carrascos ficarem cansados. E a triste figura do mal aparece como convite a desistir diante de tanto sofrimento desumano. Mas, contemporaneamente, está presente a figura de Maria, que acompanha diretamente todo o sofrimento e a obediência de Jesus: a mãe sofre junto com o Filho e depois, recebidos alguns panos da es­posa de Pilatos, recolhe, enxuga cada gota do sangue de Jesus espalhada pelo chão. É uma cena que não está nos evangelhos, mas que foi sugerida pelos relatos da experiência mística da paixão de Jesus da monja alemã Ana Katharina Emmerich.

De grande intensidade são os momentos da traição Pedro e do enforcamento de Judas: o primeiro chora nas mãos de Maria e o segundo apodrece no suicídio. Outras figuras muito bem representadas são Cláudia, a esposa de Pilatos, Maria Madalena, a Verônica, o Cirineu, o apóstolo João, os dois ladrões e o centurião romano.

O filme, seguindo a tradição mais genuína da Igreja católica, junta a paixão de Jesus e cruz com a instituição da eucaristia: o corpo oferecido no sofrimento e o sangue copiosamente derramado si identificam com o pão e o vinho dados pela salvação de todos. O filme remete a algo que está vivo além do filme, no sacramento da Igreja, e que redime a nossa vida hoje. Como aquele orvalho que sai do lado de Jesus morto na Cruz que converte o centurião (o primeiro pagão que acredita), quebra o templo, e vence o mal. Parece uma representação viva do comentário de santo Agostinho, retomado pelo documento sobre a Liturgia do Vat. II: “Do lado de Cristo dormindo na cruz nasceu o admirável sacramento da Igreja” (Sacrosanctum Concilium 5).

A ressurreição é também apresentada em dois minutos de forma simples e sugestiva segundo o testemunho do santo Sudário. Logo depois o Ressuscitado aparece vivo, mostrando uma chaga da Paixão já sarada, mas bem em evidência. Uma chaga que lembra a luta contra o mal travada por Cristo até o sangue e a possibilidade da vitória para Ele e para todos nós. Este filme seria incompleto se fosse visto apenas como um espetáculo. É claro que todos podem assistir ao filme de várias maneiras. Daqui nascem as várias reações que a imprensa relatou. Para quem vive uma experiência cristã é bom ver o filme como quando se fazem as sagradas representações nas igrejas ou nos arcos da Lapa. Nestas circunstâncias, a palavra do padre ou do bispo convida os fiéis a participar da morte e da vida do Senhor em cada comunidade. Faltando este elemento vivo da Igreja, é algo incompleto. O filme em si nos faz olhar para Cristo, e pode nos levar a pedir a Ele a nossa conversão.

 

Dom Filippo Santoro