Nunca estive no
Brasil, nem sequer na América do Sul. Conheço aquele País por ter ouvido
falar, como me foi contado e como se pode ler nos livros. Da mesma forma que se
conhecem muitas outras coisas na vida. Quando eu for ao Brasil estou certo que
"o reconhecerei". Pois era certamente um pedaço de Brasil o grande
caminhão/amplificador, ao redor do qual 20.000 torcedores escoceses, torineses
e brasileiros dançavam o samba na noite de 12 de junho de 1990, na praça do
estacionamento ao redor do estádio "Delle Alpi" de Turim. Elder Costa
Caldas, dito Fumaça, fazia rolar o ritmo diretamente da sua pele aos seus
instrumentos e olhava, na noite pré-alpina, enxergando a sua Bahia, enquanto
Netinho, (Ernesto de Souza Andrade Junior), mestiço crespo, oxigenado parecendo
mesmo ter cabelos brancos, cantava "lê- lê oh, lê - lê oh", havia
mais de três horas, sem parar, e as bailarinas Maristela e Cosette,
incansáveis, mexiam-se com a imperceptível elegância de quem possui o samba
nas pernas desde sempre: a amplificação potentíssima fazia movimentar, como
por inevitável mágica, os vinte mil torcedores e os envolvia, abraçando-os,
num grande panelão feito de samba, suor e cansaço. Na barriga eletrônica do
caminhão amplificador dois ou três técnicos eletricistas vigiavam para que
todo o complexo equipamento funcionasse. Do alto da plataforma, em cima do
caminhão, eu olhava a cena pensando nos estranhos casos da vida, perto de mim o
príncipe Sérgio de Iugoslávia com sua jovem amiga Vanessa - que acabava de
sair do papel cuchê da revista Vogue -, festejava a felicidade do momento. Ele,
também, balançando o corpo comprido ao ritmo envolvente do samba. Não era
Turim que estava embaixo de nós, mas uma cidade do mundo com uma dimensão
inefável, sem futuro nem passado, e o presente estava suspenso no ar sobre uma
almofada de samba, com 60.000 watts de amplificação.
No mês de maio de 1989 visitou-me um brasileiro, titular de uma agência de publicidade da Bahia: Edson Barbosa. Edson se qualificou como o responsável do budget publicitário do grupo Perdigão, o segundo grupo da indústria alimentícia brasileira. Barbosa estava acompanhado por Ana Maria Dini Rodrigues, de profissão R.P.: olhos verdes, equipada com um sorriso que quebrava as pedras e que parecia apenas saída de um catálogo de Giorgio Armani.Turim tinha sido sorteada como sede dos jogos do Brasil, a lenda do futebol mundial, e o problema consistia em como desfrutar esta ocasião. Falando em um idioma compreensível, mas absolutamente inqualificável entre as línguas correntes, Edson me perguntou se eu sabia o que é um trio elétrico. Confessei a minha ignorância. Então ele esclareceu: "O trio elétrico é o fim do mundo, um enorme truck, todo feito de alto-falantes e cheio de amplificadores, (60 000 watt de amplificação), sobre o truck, grande plataforma com orquestra e bailarinas que toca o samba e dança o samba, e se move pela rua e todo mundo segue e dança o samba e ninguém resiste e fica parado, pois a música mexe com você" (Este discurso todo foi feito numa mistura de português, italiano e inglês!) O conto evocou imagens em certa parte da memória, no arquivo "carnaval do Rio" e pensei haver entendido sobre o que ele estava falando. E Barbosa continuou: "Perdigão quer enviar um trio elétrico para seguir o Brasil na Copa de 90. Vai bancar tudo; viagem, orquestra, bailarinas... A Perdigão pede apenas assistência e hospedagem para o grupo durante a estada na cidade". Mostrou-me algumas fotos e um prospecto de apresentação da Perdigão. Como me foi confirmado, depois, a idéia era a de evitar os ladrões da FIFA: a Perdigão não queria pagar os dois ou três milhões de dólares para aderir ao contrato publicitário oficial da FIFA, mas queria estar presente na Copa e identificar-se, de qualquer maneira, com o time do Brasil. A idéia não era ruim e, potencialmente, interessante: Turim teria tido, durante a Copa, um perfil diferente do "homologado" pela FIFA!
Com o OK da cidade, os brasileiros partiram entusiasmados da Bahia, embarcando o trio elétrico; em Turim reservamos os quartos num hotel de Nichelino e resolvemos os problemas ligados à movimentação do trio pelas ruas da cidade. Tudo estava resolvido nos limites da imperfeição que conota as soluções complexas a problemas impossíveis quando, alguns dias antes do primeiro jogo, no início de junho de 1990, finalmente chegou o "monstro" de Génova, após uma viagem aventurosa, com escolta de polícia rodoviária. No grande quintal da secretaria o monstro é descoberto e podemos ver, de perto, a "máquina". Trata-se de uma complexa engenhoca tecnológica terceiromundista evoluída: uma construção baseada sobre uma estrutura de caminhão, larga de quatro metros e alta de cinco. Pode-se entrar na barriga por uma portinha na parte de trás e, por meio de um estreito corredor entre a parte posterior dos enormes alto-falantes e uma escadinha interna, se chega até a "imperial": a grande plataforma que hospeda a orquestra e os dançarinos de samba. Ao redor do trio estão os personagens que o manobram: brancos, negros, mulatos, crespos, loiros, loiríssimos oxigenados, crespíssimos morenos, crespíssimos loiros, altos, magros, pequenos e musculosos. As moças, muito bonitas, loiras e de cores variados. Todos muito, muito calmos, com nomes compridos como um romance: Samuel Martins Medeiro Robinson Cunha, Carlos Alberto De Jesus Silva... As competências variam do motorista-mecânico factótum, ao eletrônico da amplificação, ao cantor e diretor da orquestra e ainda, guitarristas, tecladistas, percussionistas e dançarinas de samba. A máquina parecia ficar de pé presa por meio de arames, barbantes e outros componentes de emergência institucional. O estreito corredor interno é uma floresta de fios, contatos, derivações, durex, e fita isolante utilizada em doses maciças com funções próprias e impróprias. Se tivéssemos olhado no motor, talvez teríamos descoberto que o carburador ou a caixa de mudança estavam montados por meio de abundantes fitas. "Tudo bem, tudo bem..." Os brasileiros perguntaram se podiam testar tocando alguma coisa para conferir se, depois da longa viagem por mar e pela rodovia, o trio elétrico não tivesse sofrido algum dano. Dei logo a permissão, pois não podíamos nos permitir um clamoroso fiasco na hora H. Os "duendes" mecânicos, elétricos e eletrônicos, manobraram e mexeram alguns minutos e, de repente, uma deflagração de 10 quilotoneladas, fantasiada de samba brasileiro, investiu contra a região sudoeste de Turim. O funcionário Bogliacino teve que recorrer à sala de emergência da Secretaria: já abalado pela vista das bailarinas, não estava preparado para o golpe e teve uma ligeira parada cardíaca. Eu tive que controlar algumas dificuldades no meu próprio plexo e, logo que me reanimei, parabenizei a eficácia do monstro, pensando, naquele momento, que, nas praças de Turim, a máquina teria um significativo impacto. Os brasileiros verificaram contatos, fios, mixer enquanto a deflagração continuava. Cinco minutos depois, chegaram três carros da guarda municipal e quarenta telefonemas dos cidadãos do Borgo San Paolo, da Crocetta e de San Donato-Parrella (localizados num raio entorno de 2,5 Km). Pensei que iríamos ter alguns problemas, tranqüilizei os guardas que queriam prender Bogliacino, pedi que reduzissem o volume do monstro para parar a deflagração, por motivos de segurança pública. Os brasileiros, visivelmente decepcionados, obedeceram... "tudo bem, tudo bem, não há problema". No dia seguinte estava prevista uma primeira exibição: apresentação à imprensa no café San Carlo, localizado na praça San Carlo e, em seguida, a atuação do trio em função exemplificativa com cantor, bailarinas e samba a todo volume. Os jornalistas presentes escutaram, interessados, a entrevista coletiva "Perdigão na Copa". A imprensa sub-alpina apreciou, com o comedimento que lhe é típico. Aí o trio deu início ao show: começaram a tintinar os copos, a balançar as luminárias, enquanto as vitrinas oscilavam perigosamente. Os cidadãos foram trasladados horizontalmente de alguns metros, mas retomaram, corajosamente, a linha. Dentro de dez segundos chegaram dez viaturas das guardas municipais e mandaram bloquear, imediatamente, o monstro, pois todos os sistemas de alarme dos bancos do centro da cidade ficaram fora do ar por efeito da onda de choque e ninguém entendia mais nada. A imprensa sub-alpina ignorou o evento.
Quando chegou o
primeiro jogo, Brasil contra a Suécia, o trio saiu da Secretaria na alvorada
para chegar ao estádio sem atrapalhar o trânsito e iniciou a tocar ao
meio-dia: imenso sucesso de povo. Durante o jogo chegavam, de vez em quando,
dentro do estádio, ecos de samba a 60.000 watt, e, após do jogo, quando
a polícia temia choques entre suecos, torineses e brasileiros o trio
desenvolveu a sua verdadeira, mágica função: vinte mil entre suecos,
torineses e brasileiros dançavam por horas e horas depois do jogo na esplanada
do estacionamento ao redor do trio. Grande abraço coletivo internacional ao som
do "hitchmu" do samba. Nunca assisti a algo similar. Bogliacino
dominava, do alto do imperial, controlando, com saboiana compreensão, o
desenrolar, ao ritmo do samba, dos esplêndidos bumbuns das brasileiras
vestidas, praticamente, de nada. O povo dos vinte mil "celtoescandobrasileiros"
se abraçava e se descarregava no samba que parecia não ter fim. A imprensa
sub-alpina, no dia seguinte, ignorou o fato mais uma vez, mas todos os jornais
brasileiros e suecos contaram com entusiasmo esta nota de cor. A Perdigão
conseguiu dar o seu golpe na Copa. Assim foi com todos os jogos do Brasil em
Turim. Até os temidos escoceses foram agarrados pelo samba e houve uma
fantástica "jamm session" com os brasileiros e as gaitas que
tocavam "Flowers of Scotland" ao ritmo de samba. A imprensa
continuou ignorando. O trio tocou em Porta Palazzo e mais uma vez na praça San
Carlo com alguma dificuldade por conta de alguns cidadãos que protestaram e
muitos que se divertiam: conta mais o telefonema de uma pessoa que protesta, do
que 30 mil pessoas que se divertem. Recebemos o conjunto brasileiro na Sala do
Conselho e entregamos, por conta do prefeito Maria Magnani Noia, algumas
lembranças e um presente da cidade de Turim, este, gentilmente patrocinado pela
Publigest: um esplêndido teclado Farfisa que, acho, está tocando ainda hoje em
nome da Cívica Administração de Turim, sob o céu carioca. Na ocasião fiz um
discurso em português: alguém o preparou para mim e eu o tinha transcrito
foneticamente de modo a poder interpretá-lo com um sotaque brasileiro muito
eficaz. Bogliacino não conseguiu segurar-se e exclamou, na sua saboiana
compostura: "puxa, secretário..."! Para mim foi o máximo dos
elogios. Tudo foi esplêndido, apesar de fadigoso, até o maldito jogo contra a
Argentina: a derrota do Brasil foi uma tragédia. Nunca Maradona foi tão
execrado. Naquela tarde o trio ficou mudo, a tripulação em lágrimas, os
dançarinos aniquilados pelo desabamento do céu. Nós, da Secretaria,
estávamos totalmente envolvidos. Bogliacino parecia quase irrecuperável,
apesar da frieza tradicional, por causa de sua participação em toda a
história. O trio estava em apuros também economicamente: não havia mais
razão de seguir o time nos jogos sucessivos. Toda a máquina estava preste a um
triste retorno. Mandei o grupo para a nossa fazenda do Brero, para economizar um
pouco de dinheiro e para permitir aos brasileiros de se recuperar, com o bom ar
e saudáveis sonecas. Resolvidos os problemas organizativos para a volta,
liberados na alfândega os "woofers" comprados na Alemanha para
o trio, fui cumprimentá-los e, quando pedi para que se apresentasse mais uma
vez na Praça San Carlo, para o adeus a Turim, um arrepio tomou conta de todos.
Foi a mais linda noite de saudade brasileira, saudade e "hitchmu".
20 mil torineses dançaram com o trio elétrico acompanhando o grande carro ao
longo da Via Roma e cumprimentando, talvez, o único evento garboso da horrível
mistura de vulgaridade que foi a "Itália 90".
Na Secretaria a lembrança do trio é vivíssima: o olho de Bogliacino manda sempre relâmpagos eloqüentes durante as revocações. As maldições "voodoo" e cariocas sobre Maradona, multiplicadas pela potência do mágico triângulo de Turim, tiveram uma poderosa eficácia, pois, poucos meses depois, aconteceu o seu clamoroso desabamento. Nunca mais revi alguém dos brasileiros: disseram-me que Pedrinho canta num bar de Bahia e eu me reprometo, um dia, preencher a minha lacuna e ir "revisitar" o Brasil onde acho que viver serenamente com a incerteza seja uma arte consolidada e indispensável. Com a única exceção da insuportável dor pela derrota do time emblema.