Silvio Berlusconi, semana passada, cometeu um crime contra a política, mas de que se trata, exatamente? O duelo verbal entre Berlusconi e o Parlamento europeu nasceu mesmo pela falta de respeito do primeiro ministro para com as convenções diplomáticas, pelo desprezo para com a sensibilidade dos alemães, ou, talvez, tinha nascido pelas perguntas, muito válidas, sobre as origens de seu poder político? Do ponto de vista britânico, sempre um pouco afastado daquele de Bruxelas, este conflito comporta outros argumentos mais interessantes e significativos. A comparação usada por Berlusconi, que equiparou um simples deputado alemão a um kapó (traduzido erradamente, pela maioria dos mídia, como guardião o diretor de campo de concentração - lager em alemão -, na realidade é o termo que designava o prisioneiro, escolhido pelos alemães, encarregado de vigiar seus companheiros de prisão a fim de delatá-los. Ndt), foi descrito como ofensa à democracia. Mas, em tal caso, como é possível que as comparações feitas, por parte do senhor Schulz, no Parlamento Europeu entre o líder democrático da quarta nação européia, a Itália, e um gangster mafioso não suscitaram o mesmo clamor? E, se a história criou cicatrizes culturais, que não deveriam ser tocadas por nenhum político responsável, por que os próprios alemães continuam violando esse tabu? Em outubro passado, o ex-ministro da Justiça alemão, acusou o presidente Bush de comportar-se como Hitler, enquanto, alguns meses antes, Helmut Kohl comparou o presidente do Parlamento alemão a Hermann Goering.
Então, parece que os ataques movidos a Berlusconi sejam motivados por algo mais significativo que sua insensibilidade cultural ou seu estilo pessoal. Até seus inimigos o admitem. É suficiente falar por apenas um minuto com um político qualquer do establishment em Bruxelas, Berlim ou Paris para conhecer a verdadeira razão pela qual, segundo os críticos, Berlusconi não estaria em grau de guiar a Europa nos próximos meses, repletos de desafios: "Como pode um homem perseguido por ações legais e por acusações de corrupção política, inspirar confiança no projeto europeu?". Efetivamente esta é uma ótima pergunta. O problema é que se poderia levantar a mesma objeção contra algumas das figuras de destaque que guiaram o projeto europeu no passado e que são, ainda hoje, reconhecidas como os mais importantes líderes da Europa. Por exemplo, o Presidente Chirac, que se defendeu dos magistrados que tentavam indagá-lo sobre seus obscuros negócios pessoais quando era prefeito de Paris, podendo contar com uma imunidade governativa, idêntica àquela que agora protege Berlusconi. Helmut Kohl, o homem reconhecido universalmente como Pai da Alemanha moderna e da hodierna União Européia, foi totalmente desacreditado pelas investigações, de maneira que não foi possível convidá-lo para a comemoração da unificação alemã, obtida por ele próprio. Outra pessoa não grata à cerimônia, se ainda estivesse vivo, teria sido, provavelmente, François Mitterrand, sócio de Kohl em muitos negócios financeiros corruptos, franco-alemães. A lista poderia continuar até o infinito, incluindo dúzias de líderes menos ilustres da história moderna - para não citar as inúmeras figuras de destaques do recente passado centro-esquerdista italiano. Formulando estes pontos, não quero insinuar que a política européia seja a única a ser corrompida. A política americana é, provavelmente, igual. Podemos citar como exemplo os vínculos do Presidente Bush e do seu vice, Cheney, com a Enron. A Grã Bretanha, o Japão e a maior parte das outras democracias viveram suas temporadas de escândalos.
Isso não significa minimamente que os abusos de Chirac, Mitterrand ou Kohl possam justificar análogos abusos de Berlusconi. Apenas quero dizer que a controvertida personalidade de Berlusconi, sozinha, não pode esclarecer a hostilidade contra ele, por parte dos políticos tradicionais de Bruxelas, Paris e Berlim. Então, qual é o cerne da questão? Aqui entra em cena o ponto de vista britânico. O que o establishment político europeu detesta, verdadeiramente, não é a personalidade de Berlusconi, mas sua ideologia política, em particular, sua postura sobre o posicionamento da Itália na Europa. Berlusconi é o primeiro líder italiano moderno que não é visto como um aliado natural da França e da Alemanha, mas da Espanha e da Grã Bretanha, pelas reformas econômicas, pela política externa e pelo relacionamento transatlântico. Ele é o primeiro líder italiano que declarou que a Itália é uma das quatro grandes nações da Europa, em nível igual ao da Alemanha, França e Grã Bretanha, não somente pela população, mas, igualmente, pela potência econômica. Ele é, então, o primeiro a questionar o dogma que prevê o papel de suporte da Itália à "locomotiva franco-alemã", pois esta locomotiva parece estar a empurrar a Europa rumo a uma integração sempre mais total, governada por um Estado centralizado e burocrático. Esta visão colima melhor com as tradições racionalistas alemães e francesas, do que a cultura mais descentralizada, inovadora e empresarial que a Itália compartilha com a Grã Bretanha e algumas outras nações que possuem uma visão de abertura além da UE. Para Paris, Berlim e Bruxelas, a possibilidade que um governo italiano, agressivamente independente, possa alinhar-se com Londres e Madri, seria suficiente para mudar a balança do poder sobre muitos assuntos, especialmente após o alargamento da UE. O eixo franco-alemão deu como adquirido o apoio italiano ao longo dos últimos cinqüenta anos. Como resultado, este apoio, indiscutido, permitiu à França e à Alemanha que orientassem a Europa em qualquer direção, a seu bel prazer. Agora, após cinqüenta anos, não podem mais dar como normal o apoio italiano, uma lição que aprenderam com sumo horror durante o debate sobre o Iraque. Conseqüentemente, o futuro da Europa deverá ser compactuado com o consentimento de todas as nações européias. Sem o apoio automático da Itália, o eixo franco-alemão não poderá mais dominar a Europa.
Este é o verdadeiro crime cometido por Berlusconi, e seu verdadeiro sucesso.