Tomo emprestado o nome
da obra de Chordeclos de Laclos para abordar, a partir de uma cena que
presenciei, esse nó de perigosíssimas ligações que se instalam no país em
proporções alarmantes. O Caso Renan é apenas um sintoma – e sintoma menor,
saibam – desse conjunto de ligações perigosas.
Hora do pico. Trânsito lento. A minha pista, como de hábito, a mais vagarosa. O
motivo rodava e balançava diante dos meus olhos. Era um amontoado de sacos de
lixo levados numa carroça. Repleta a caçamba, outros volumes haviam sido
pendurados em cascata pelo lado de fora. Ao ultrapassá-lo, para minha surpresa,
não vi animal algum. Um homem de meia idade, pequena estatura, maltrapilho e
alquebrado, puxava o veículo com a força e o peso do corpo jogado para diante.
Sua fisionomia expressava com nitidez o esforço despendido. Ele era o seu
próprio cavalo.
Que país é este? Enquanto continuam sendo criados mais e mais empregos de luxo
para apadrinhados políticos, enquanto se atribuem tarefas de Estado a indivíduos
incompetentes, enquanto os grandes bancos se refestelam, enquanto se esbanjam
recursos públicos para nutrir as bases de sustentação de um poder corrupto,
enquanto as elites políticas acariciam um modelo institucional podre por
natureza, seres humanos se fazem de cavalo. E se fazem de cavalo para coletar
lixo. E coletam lixo para produzir tostões que reverterão em migalhas para si e
para os seus.
Que imensa contradição, leitor! Quanta podridão endinheirada e quanta
integridade miserável! Que testemunho silencioso de adesão ao bem e ao valor do
trabalho! É certo, certíssimo, que lá no ambiente onde o carroceiro vive, está
presente a sedução do tráfico, do dinheiro fácil, da vida criminosa. Ali agem
tantas quadrilhas quanto nos mais altos escalões da República. Mas ele,
movido apenas por valores morais, imateriais, e na falta de outras
possibilidades, se submete a trabalhar como animal de carga.
Olhem-no, senhores da corte, com seus ternos Armani e seu discursinho meloso em
favor dos pobres. Vejam-no, senhores nababos do poder, estadistas de
meia-tigela, que se atrevem a governar um país, mas não saberiam gerir
honestamente um botequim. Contemplem-no, demagogos de todos os pêlos, aferrados
a um modelo político corrupto e corruptor, lambuzados na gastança pública para
benefício próprio. Aprendei com ele, usufrutuários das regalias proporcionadas
pelos corporativismos! Ali vai um brasileiro exemplar! Eu quero que esse homem
seja nome de rua, que tenha busto na Praça dos Três Poderes, que haja uma placa
em sua reverência no plenário do Congresso Nacional.
Desigualdades sociais são decorrências inevitáveis das inúmeras diferenças
naturais existentes entre os seres humanos, mas a dignidade que todos temos em
comum torna inaceitável essa ligação perigosa da miséria absoluta com a absoluta
opulência. Ela nasce da perigosa ligação da burrice com o problema, do poder com
a incompetência, do refluxo dos que se omitem com a maré dos demagogos. E,
principalmente, das perigosíssimas e promíscuas ligações que o presidencialismo
estabelece entre Estado, governo e administração. Elas alcançam o apogeu quando
controladas por pessoas com discurso de Dom Quixote, discernimento de Rocinante
e ambições de Alifanfarrão.