Harrison e Tiradentes.

Gilberto Ramos - economista, foi Vice-Prefeito do Rio

Tiradentes e Jorge HarrisonA Rede Globo está fazendo as chamadas da minisérie "O quinto dos infernos", nome do movimento que desembocou na Inconfidência Mineira e no enforcamento de Tiradentes. Essa luta contra a tributação injusta e exagerada, curiosamente, foi um traço comum entre o beatle George Harrison e Tiradentes.

A Coroa Portuguesa resolveu cobrar 20% (1/5) de tudo que se arrecadasse no garimpo, àquela época, a principal atividade econômica de Minas Gerais - daí o nome do estado. De notar, naquele tempo existia, tão somente, o imposto aduaneiro, incidente sobre "negócios com o estrangeiro", expressão usada muito usada nas ordenações portuguesas. Vê-se, portanto, que já tivemos imposto único. Bons tempos. Hoje são 59 tributos entre impostos, taxas e contribuições. Essa sim é a verdadeira "derrama", termo usado para designar a odiosa expropriação fiscal no período colonial. Desconfio que a manutenção da corte é mais barata que sustentar a república.

Dando um salto de mais de dois séculos, esse saudável inconformismo se repete, desta vez pela música genial dos Beatles. Na extensa obra de Harrison, uma de suas mais notáveis canções foi "Taxman" (coletor de impostos). Os Beatles foram, através da música, inspirados críticos de nosso tempo. Misturando letras de extrema ternura com outras que se notabilizaram como protesto, deixaram uma bagagem que o tempo não dissipará. Incrível que "Taxman" seja uma letra pouco conhecida por aqui, embora tenha feito grande sucesso na Inglaterra. Harrison, em entrevista de 1980, declara: "Taxman foi escrita quando descobri que, apesar de estarmos ganhando dinheiro, a maior parte estava sendo drenada pelos impostos. Era e ainda é uma realidade".

Na última frase da letra o cobrador de impostos diz textualmente, sem dó nem piedade: "And you're working for no one but me". Quando me dou conta de que a carga de impostos no Brasil alcançou, em 2001, 34% do PIB brasileiro, acho que Harrison estava 20 anos adiante do nosso tempo. O "quintos dos infernos" nos dias de hoje seria mamão com açúcar. Faço parágrafo e me socorro de Tiradentes.

Nosso alferes, se souber lá no céu que o governo nos cobra 59 impostos, é capaz de pedir permissão para dar um pulinho aqui embaixo, subir num banquinho e, no gogó, começar uma nova insurreição. Estou dizendo no gogó por que ainda não vi um único programa de televisão abordando esse tema. Ë sempre o mesmo papo da concentração de renda e pobreza generalizada. Até parece que essa crueldade econômica nada tem a ver com a ensandecida tributação brasileira.

Espero que a produção do "Quinto dos infernos" não descambe para as futricas e libertinagens, infelizmente tão comuns na história do Brasil. O desafio é conseguir uma boa audiência pelo lado sério do tema. É uma grande chance para levarmos ao povão a necessidade de pressionarmos os acomodados legisladores brasileiros. A reforma tributária não deve, porém, se resumir a uma lanternagem barata no calhambeque enferrujado do sistema tributário nacional, tão arcaico e complicado. Não dá mais para meras guaribadas. Ou acabamos com os impostos declaratórios, ou vamos continuar convivendo numa sociedade dividida entre otários e espertalhões. Enquanto os primeiros pagam, os últimos, além de fingirem que estão pagando, ainda repassam o custo para os primeiros. Que bom seria se Tiradentes nos revisitasse e fizesse um dueto com Harrison. Será que eles estão planejando essa viagem lá no céu ?