Percival Puggina - Zero Hora, 06/07/2008
Embora endêmica, irritante, quase sempre impune e gerando
graves conseqüências, a corrupção é apenas mais uma das muitas tragédias
nacionais. Mas não é a maior. O grande problema do Brasil, aquele perante o qual
os demais se tornam diminutos, é nossa secular capacidade de convivermos com
esse problema sem nos darmos conta dele. De certo modo, dormimos com o inimigo.
E ninguém está tão longe da solução quanto quem sequer sabe qual é o problema,
não é mesmo?
Sempre e sempre, quando o tema da corrupção entra em pauta, o esforço da inteligência se volta para a crítica aos políticos, às práticas políticas e à necessidade de uma legislação controladora e repressiva. Condena-se, com razão, o rateio dos cargos, a entrega de funções administrativas aos militantes partidários, a deficiência dos controles, a troca de votos por emendas parlamentares e por aí afora. Recentemente, ouvi de um entendido que a prerrogativa de nomear, usada pelos governos para compor maioria nos legislativos, destrói o papel fiscalizador do
parlamento e torna impossível o bom desenvolvimento do serviço público. Ora, tudo isso é tiro na ponta da asa da conseqüência, sem a menor pontaria sobre a causa, que está chocando seus filhotes daninhos bem longe dali. Reflita, leitor. Em praticamente todas as democracias, e certamente em todas as que funcionam bem, o governo é eleito pela maioria parlamentar e é formado mediante rateio dos seus postos de comando entre os partidos que o integram. Não há nisso indecência alguma. A maioria fica responsável pelo governo, a minoria pela sua fiscalização e ambas cumprem bem o seu papel.
O desastre moral que se instala entre nós decorre do fato de havermos invertido a regra do jogo, porque, primeiro elegemos o governante e depois lhe impomos o dever de adquirir, no balcão dos negócios e dos favores, a cada votação importante, a necessária maioria parlamentar. É uma operação tão onerosa que acaba envolvendo não só algumas dezenas de postos do governo (como ocorre nas democracias parlamentaristas), mas dezenas de milhares de cargos, o conjunto da administração, e toda aquela parte do orçamento que é convertida em emendas parlamentares. Tudo é moeda desse negócio. No dia, no bem-aventurado dia em que a nação compreender isso terá resolvido o maior de seus problemas, viabilizando-se, no quadro das instituições, a solução dos demais.
Ano passado fui convidado a fazer uma palestra em Córdoba. Quando descrevi as agruras éticas determinadas pelo nosso modelo político, alguém disse: "Usted describió muy bien la situación de Argentina". Eu sabia que sim. O que falei sobre nós poderia ser dito da quase totalidade dos países ibero-americanos. Somos todos portadores de idêntico pecado original, um modelo presidencialista que funde na mesma pessoa, com prejuízo das três funções, o Estado, o Governo e a Administração. Em todos, o Parlamento é a casa-da-mãe-Joana, onde responsabilidade é exigência de caráter e não da função. Em todos, os políticos são malvistos. Em todos avulta a descrença na política e na democracia. E em todos o cenário se faz mais e mais favorável ao autoritarismo populista.
Grande parte dos nossos problemas políticos se corrigiria com a mudança do sistema de governo. Hoje, no entanto, estamos longe disso porque não compreendemos a natureza da encrenca nacional. Todo nosso empenho em relação ao assunto, no modelo vigente, equivale a fazer fisioterapia num defunto moral, num sistema que não tem recuperação porque jamais foi melhor do que isso. Perguntem ao Rui Barbosa.