Brizola na História, Lula no poder

O engano de Golbery: a esquerda chegou ao poder sem o caudilho getulista - de José Nêumanne, jornalista e escritor, editorialista do Jornal da Tarde

Leonel Brizola, entrevistado por ITALIAMIGAA morte de Leonel Brizola, aos 82 anos, interrompeu um período raro de ostracismo em sua carreira política, iniciada à sombra de Getúlio Vargas no interregno entre a queda da ditadura deste e seu governo democrático, encerrado com o suicídio, em 1954. Com os restos mortais do criador do "socialismo moreno" foram enterrados também alguns capítulos da História política e administrativa de nossa República.

Um, capital, embora pouco lembrado, foi o do caudilhismo gaúcho. Ao derrubar Washington Luís e amarrar os "pingos" de seus peões no obelisco no Rio, em 1930, Getúlio Vargas levou para o centro das decisões nacionais um estilo de fazer política e administrar estranho à tradição dos rodízios no poder de conservadores e liberais, ditos "saquaremas" e "luzias", do Segundo Império, e da política dos governadores, regada a café paulista com leite mineiro, na República Velha. Esporas e chimarrões hispânicos tomaram o lugar antes ocupado por borzeguins e rapapés lusitanos, sob a égide de um estancieiro manhoso que dormiu ex-ditador para acordar, cinco anos depois, "pai dos pobres", consagrado nas urnas pelo voto de origem popular. Brizola tomou desse mate e foi fiel ao estilo do chefe, a quem nunca deixou de obedecer, mesmo depois de este ter deixado "a vida para entrar na História": resistiu aos militares quando eles quiseram evitar a posse de seu cunhado João Goulart, em 1961; tentou derrubá-los quando, enfim, assumiram o poder em 1964, na guerrilha de Caparaó; e se negou a fazer parte da malograda Frente Ampla, com JK e Carlos Lacerda, por considerá-la uma traição de Jango à memória do "velhinho", que tanto prezava.

Quando, enfim, voltou do exílio, já não havia mais espaço para "gauchadas" no centro das decisões. Por isso, mesmo tendo sido governador por duas vezes do Estado adotivo do Rio de Janeiro, jamais chegou à Presidência. Sua morte veio encerrar o inventário de fogo e sangue de Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, Silveira Martins e Assis Brasil.

Outro capítulo importante encerrado, o do getulismo, era resultado deste. Em São Borja - onde foi enterrado ao lado de Getúlio e Jango - descansa em paz a célebre "herança de Vargas", cujo fim foi celebrado por seu adversário Fernando Henrique no discurso com que se despediu do Senado, em 1993, para se candidatar ao primeiro dos dois mandatos presidenciais que cumpriu nesta nova era, na qual a política brasileira deixou de oscilar, como um pêndulo perpétuo, entre o populismo getulista e o salvacionismo megalômano compartilhado por seus adversários políticos com os militares.

Também desapareceu com o "engenheiro" - mais que um ofício aprendido na escola, sua opção pela ação (Carlos Lacerda reconhecia em seu maior adversário pendor idêntico ao dele pela realização administrativa, em detrimento da habilidade da negociação política) - o último representante da geração de políticos defenestrados pelo golpe militar de 1964. Destes somente Jânio Quadros e ele recuperaram os direitos políticos, com a anistia, a tempo de pretenderem voltar ao centro do poder. Populista de outro jaez, o primeiro ainda foi prefeito de São Paulo, mas sucumbiu à doença antes de tentar voltar a alçar o vôo mais alto. Brizola chegou mais perto, seja por ter governado o segundo Estado mais importante da Federação, seja por ter perdido no olho mecânico para Luiz Inácio Lula da Silva a chance de disputar a Presidência da República com Fernando Collor no segundo turno, em 1989. Mas a incompatibilidade entre suas idéias, herdadas dos caudilhos de antanho, via Getúlio, e o Brasil inserido no mundo pós-guerra fria impediu que atingisse o maior objetivo de sua vida.

Extinto Brizola, pode-se considerar a hipótese de que outro adversário notório dele, o general Golbery do Couto e Silva, artífice ideológico do golpe de 1964, esteja, enfim, descansando em paz. Pois parte considerável da inteligência, da capacidade de articulação, do poder e do prestígio deste conspirador, tido como "mago", foi empregada para evitar que, concluída a abertura política lenta e gradual, o mais visado dos exilados empolgasse o País e o poder, destruindo a obra dos militares. Com um golpe baixo, tirou-lhe a sigla emblemática do PTB getulista. E, com seus pouco reconhecidos dons de profeta, enxergou no jovem Lula, líder dos metalúrgicos do ABC, um competidor à altura dele. Só que, ao perder o controle dos cordéis para o general Medeiros, chefe do monstro que ele próprio criara, o SNI, viu sua esperança de desalojar o risco "socialista moreno" da liderança das massas operárias se cumprir, mas se juntar à esquerda e criar uma nova alternativa de poder, fora do comunismo, do caudilhismo, do populismo e do salvacionismo.

Eis, então, outra ironia da História, que nem Golbery foi capaz de vaticinar: Leonel Brizola está na História. E a esquerda no poder, com Lula.