Anomia

Gilberto Ramos, maio de 2003

Dahrendorf no seu antológico "A ordem e a lei", conta o episódio da velhinha berlinense que foi assaltada pelo soldado russo que lhe surrupiou a bicicleta. Um segundo soldado, apiedando-se da velhinha, tenta consolá-la oferecendo-lhe seu cavalo em troca da bicicleta. Nem a velhinha nem o bom soldado se lembraram de recorrer às leis e às autoridades. Elas simplesmente não existiam em 1945. Não tenho dúvida de que o Brasil está às vésperas da anomia: Temos leis, mas não temos autoridade que as imponha. Principalmente no Rio.

Uma das características do estado anômico é a falta de lógica na escolha das vítimas. Tanto faz uma inocente menina de 14 anos, ou um negrinho favelado, esquálido, mal entrado na puberdade, ou um Juiz de Direito, um professor de história da arte, um empresário bom caráter e patrão exemplar, ou um policial trabalhador e humilde. O alvo é indeterminado e as balas perdidas continuarão zunindo nossos ouvidos. A delinqüência percebe que o importante é mostrar que existe um novo poder cevado na impunidade e na genuflexão dos homens de bem que, submissos às rotinas impostas pelos heróis da clandestinidade, não sabem se o comércio abrirá as portas, se o ônibus passará no ponto, e se os filhos terão aula na escola fechada pelo tráfico. Ajudada pela massificação midiática, a constante transgressão penal passa-nos a sensação de que o castelo das leis está desmoronando e, como não existe norma sem sanção nem sanção sem coação, a anomia desperta o perigoso antídoto do governo forte, às vezes forte demais, tirânico quase sempre.

A desordem, temperada pela agressividade, transformou-se na síndrome carioca. O poder DE polícia está na raiz da cidadania e só pode ser amparado pelo poder DA polícia. Se não existe a segunda, tampouco existirá a primeira e, portanto, a mensagem subliminar é "salve-se quem puder e o que puder". Vide Bagdá. O Rio está desgovernado. Aliás, desde 1982. Ou reagimos agora em respeito às nossas famílias, ou seremos avassalados pelos corruptos e facínoras. O desgoverno atual, fruto do neopopulismo étnico-religioso, não pode perdurar. O Rio com seus cara-pintadas já botou um presidente pseudo-valentão para correr, pois voltemos às ruas para ejetarmos este caótico governo estadual. O fato é que não temos alternativa: é reagir ou reagir. A todo risco e mesmo sabendo que inocentes podem ser atingidos neste confronto inadiável. Mas como eles também serão vitimados pela nossa omissão, vamos à luta. Guerra é guerra.

Queremos que a democracia se consolide com a sociedade controlando o governo, nunca o inverso; que a autoridade das leis supere a lei das autoridades; que não se inverta a agenda das prioridades nacionais, ou será que vamos priorizar a discussão da exclusão digital antes de resolvermos a exclusão alimentar ? Que o controle da natalidade seja considerado vital para o êxito do Fome Zero; que o clero compreenda que a prática cristã significa, também, a responsabilidade social pelo crescimento desordenado das populações pobres e desassistidas pelo estado e que, portanto, pastoreie mais as almas e menos os eleitores; que a justiça seja célere e com controle externo; que os advogados sejam menos processualistas; que os políticos não cometam o estelionato eleitoral da incoerência entre os discursos pré e pós eleitoral, que gastem nas campanhas o mínimo razoável e explicável, que não se valham de factóides para saciar a mídia, que cessem com a patrimonialização desavergonhada do empreguismo, que mantenham alianças e dissidências minimamente coerentes; que a reforma tributária elimine os impostos declaratórios; que a reforma previdenciária iguale todos os brasileiros através de uma regra simples - aposentadoria proporcional às contribuições; que a revisão do CP possa incluir o agravamento da pena pela agressão às mulheres e crianças; que sejam convergentes os interesses entre o capital e o trabalho; e que Deus abençoe os que, em nosso nome, tiverem a missão antipática - mas divina - de impor a lei, com tanta força quanto necessário.