A gorjetinha para um sem-carteirinha

José Neumanne - jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde.

Nunca alguém com tanto poder na cúpula federal fora flagrado pedindo tão pouco a um contraventor. A quem perguntar ao autor destas linhas quais os dez melhores textos de todos os tempos ele citará, de saída, o elogio fúnebre de Marco Antônio a Júlio César perante o cadáver deste, para denunciar um de seus assassinos, Brutus, na tragédia de Shakespeare. Sendo Brutus fido como probo, o orador terminava cada louvação a César com um bordão: "Mas Brutus é um homem honrado". Vem esse refrão ora a calhar ante a notícia publicada pela Época sobre a existência de um vídeo com um diálogo do bicheiro Carlinhos Cachoeira com Waldomiro Diniz, ex-vice-chefe da Casa Civil para Assuntos Parlamentares.

Esse Waldomiro surgiu na capital federal como funcionário demitido por Collor da Caixa Econômica Federal , tornando-se, por isso, membro da tropa de choque do presidente nacional do PT, deputado José Dirceu (SP), a quem municiava com informações por este usadas na CPI de PC Farias. Depois, foi assessor parlamentar do governador do Distrito Federal, Cristovam Buarque, do PT. Em seguida, fez parte da cota do PT no governo de Anthony Garotinho, do PSB, primeiro como chefe do escritório do Estado do Rio em Brasília e depois na presidência da Loterj, na qual permaneceu durante o governo de Benedita da Silva, do PT. Foi aí que pediu dinheiro para as campanhas da própria Benedita e de Geraldo Magela, que seria derrotado por Joaquim Roriz no Distrito Federal (ambos do PT) e de Rosinha Garotinho (do PSB) ao contraventor, aproveitando para exigir uma propina de 1%. E no atual governo federal, do PT, ocupava um gabinete no quarto andar do Palácio do Planalto, a 20 metros do escritório do próprio José Dirceu, do PT, com quem, aliás, chegou a compartilhar moradia. A sigla PT foi acima relacionada sete vezes com Waldomiro, mas só ocorreu ao presidente nacional do partido, José Genoíno, um cidadão honrado como Brutus, para reagir às pedradas da oposição, que ele não era filiado ao partido. Não vai este escriba querer açular a turba contra Genoino, Dirceu ou o PT, como pretendia Marco Antônio diante do cadáver de Júlio César. Mas a linha da defesa de Genoino é ridícula para um escândalo dessa gravidade. Nem original ele foi: quando o Ministério Público de Santo André resolveu reabrir as investigações sobre a execução do petista Celso Daniel, a primeira coisa que lhe ocorreu informar foi que o acusado de ser o mandante, Sérgio Gomes da Silva, o Sombra, nunca fora do partido que preside e a cuja cúpula empresta sua lenda de bravo ex-guerrilheiro e probo ex-deputado. Com todo o respeito que merece a trajetória política do companheiro Genoino - da guerrilha do Araguaia à presidência nacional do partido que comanda o atual governo -, o discurso de Marco Antônio ante o cadáver de Júlio César é areia demais para o caminhãozinho que ele anda dirigindo. Talvez lhe cabesse melhor uma metáfora menos, digamos, nobre. Quem sabe aquela piada clássica dos tempos da Guerra Fria, protagonizada por um americano e um russo. Contava-se, então, que um russo exibia a um visitante imperialista a belíssima estação central do Metrô moscovita, toda em mármore, insinuando o contraste daquele prédio com o mau estado de conservação das estações metroviárias de Nova York. Ocorre que passava das dez horas e o trem das oito ainda não havia chegado. E o americano, talvez por um cacoete imperialista, consultava, nervosamente, o relógio, embora não dirigisse nenhuma queixa ou reprovação ao interlocutor. Incomodado com a evidência de que o trem não chegava e o tempo passava, o russo disparou, à queima-roupa: "É, mas vocês matavam índios!" Sim, de fato, por mais probo que seja Genoino ou ainda que Waldomiro Diniz tenha, como alega, agido apenas por iniciativa pessoal, sem consultar Dirceu nem a cúpula do partido, ao alcance de um telefone, o fato de ele ter tido tanto poder no governo petista e havê-lo usado para pedir dinheiro a um bicheiro deve merecer punição bem mais severa e geral que a mera exoneração do burocrata flagrado e a promessa de que o assunto será investigado a fundo. "Duela a quien duela", como diria o ex Collor. Sem querer parecer mais cínico do que deveria ser um ocupante deste espaço, talvez seja o caso de registrar que esse caso é original, no mínimo, pela importância do acusado e pelo valor da gorjetinha: 1%. Estará PC Farias remexendo na tumba?