"Cuerpo
de mujer, blancas colinas, muslos blancos, / te pareces al mundo en tu actitud
de entrega" ("Corpo de mulher, brancas colinas, coxas brancas, / te
pareces com o mundo em tua atitude de entrega"). Eu devia ter uns 15 para
16 anos quando li estes versos pela primeira vez. Eles são a abertura do
primeiro dos Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, de Pablo Neruda. E
eu nem precisei ler mais do livro do poeta chileno para elegê-lo como mais que
o favorito uma espécie de símbolo máximo do que significava a poesia.
Ouvia-os repetidas vezes na voz pouco melodiosa, mas adequada do autor já
velho, reproduzida em vinil, como se fossem a reza de uma nova religião sem
deuses, mas cujo sumo-sacerdote era um sujeito calvo com cara de tio bonachão,
que havia escrito aquele livro mágico, de capa já ensebada de tanta
manipulação, com uma idade muito pouco mais avançada que a de leitores como
eu: antes de chegar aos 20 anos, o dono daquela voz hesitante, mas perfeita para
ler aqueles poemas (um por ano de vida) de amor e, mais ainda, a canção
desesperada, já encarnava melhor que ninguém a figura do POETA. Só havia uma
comparação possível com outro adolescente, o francês Arthur Rimbaud, que
escrevera O barco bêbado, uma obra prima, com apenas 16. Mas Rimbaud
abandonaria a poesia logo após passar pelos 20 anos para contrabandear armas na
África e o chileno dedicou os 69 anos de sua passagem pelo Planeta apenas a
escrever, dizer e praticar poesia.
"Mi cuerpo de labriego salvaje te socava / y hace saltar el hijo del fondo de la tierra" ("Meu corpo de lavrador selvagem te escava / e faz saltar o filho do fundo da terra"). Assim terminava a primeira estrofe daquele primeiro poema mágico de um poeta que estreara um ano antes de Vinte poemas..., aos 19, com Crepusculario e se tornaria, além do símbolo popular daquela palavra mágica POETA, o grande paradoxo de uma poesia que, além de muito profícua, também pode, como reivindicou seu colega espanhol Rafael Alberti, ser tida como uma das melhores do mundo, a escrita em língua castelhana. Escreve-se muito em castelhano, talvez se escreva demais. Ainda assim, poucos poetas produziram tão extensiva e copiosamente quanto o chileno cujo sobrenome (que ele próprio inventou, como seus versos) ressoa na alma dos amantes da poesia em quaisquer língua ou lugar. Só que seu gênio reconhecido e recolhido em todas as antologias como o espírito de um condor que voa alto sobre a cordilheira dos Andes foi também capaz de produzir as mais constrangedoras bobagens perpetradas por poetastros de vôo curto, como, por exemplo, J. G. de Araújo Jorge, o brasileiro que com ele disputou a cabeceira dos adolescentes que se comunicavam com parceiros e parceiras usando a palavra poética como veículo.
Insubmissão aos cânones críticos - Fruto de uma tradição poética que gerou o gênio bem comportado e manso de Gabriela Mistral, como ele laureada com o Prêmio Nobel da Literatura, e Vicente Huidobro, cujo poema longo Altazor ou a viagem em pára-quedas, lançado na Europa sete anos depois de Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, tornou-se a fonte onde todas as vanguardas poéticas beberiam, Neruda foi capaz de produzir a mais pura poesia. E incapaz de deserdar a subliteratura mais vil: o que lhe sobrava em engenho faltava em autocrítica. Talvez por um traço característico de seu temperamento: a renitente e altiva insubmissão aos cânones fixados pela crítica literária.
Mario Vargas Llosa, o romancista peruano que o conheceu na casa do colega chileno Jorge Edwards (amigo, biógrafo e anfitrião de Neruda em Paris), escreveu um magnífico texto a propósito do centenário do poeta, nascido em 12 de julho de 1904, no povoado de Parral no Sul do Chile, no lar chefiado por um ferroviário descendente de agriculturas empobrecidos. Nesse texto nostálgico e reverente, o autor de Pantaleão e as visitadoras registrou sua desconfiança de que a autoproclamada ignorância dos cânones por Neruda não passava de charme, pois sua caudalosa produção poética remete a influências dos clássicos castelhanos, como Góngora e Quevedo, e portugueses, particularmente Luís de Camões. E óbvia é afiliação de seu estro ao do americano Walt Whitman, de quem sempre foi considerado uma espécie de discípulo. Também é evidente a marca de inquietude em sua poesia - claramente herdada de Poe, Lautréamont e Baudelaire.
O anfitrião dos encontros em que Vargas Llosa se disse beneficiário da simpatia e da generosidade do poeta, Jorge Edwards, concorda, ao registrar em texto que escreveu para apresentar uma Antologia Poética, publicada pela José Olympio no Brasil (com tradução de Eliane Zagury) nos anos 60: "Em inumeráveis poemas e na maioria dos seus textos em prosa, Neruda não se cansa de render homenagem à tradição literária. Na sua Viaje al corazón de Quevedo fala dos rios de ferro: a tradição e a revolução. E num discurso de incorporação à Universidade do Chile, o único poema que Neruda citou extensamente foi La Jolle Rousse, em que Apollinaire julga a longa disputa da tradição e da invenção."
A vida como ela é - Nesse mesmo texto, o prosador chileno dá ao leitor brasileiro várias provas literais do apreço de seu amigo e hóspede pela vida como matéria prima da poesia e seu asco pelo laboratório semântico, freqüentado por outros grandes artífices da palavra de sua época - do patrício Vicente Huidobro ao peruano César Vallejo, do mexicano Octavio Paz ao brasileiro João Cabral de Melo Neto. "Falo de coisas que existem. Deus me livre de inventar coisas quando estou cantando", escreveu Neruda, que já no livro de estréia e com este pseudônimo (seu nome era Ricardo Neftali Reyes Basoalto, mas passou a ser Pablo Neruda aos 16 anos, porque o pai não tolerava que ele fosse poeta) e aos 42 adotou a marca literária como identificação civil, autorizado pela Justiça chilena), havia cantado em versos: "ai, que lição com seu trabalho me deu o pedreiro tranqüilo."
Inúmeras vezes ele voltou a este tema de seu amor pelas impurezas que fazem a realidade contra a natureza diáfana da poesia dos letrados, que o tornou amigo fraterno de dois colegas brasileiros, Vinicius de Moraes e Thiago de Mello. Este talvez seja a maior causa de ele se ter tornado um "poeta popular" em toda a extensão de significados que esta expressão possa ter. E as lembranças de seus companheiros de copa e sala de estar são confirmadas na profissão de fé que ele fez ao receber, em 1971, dois anos antes de morrer, o maior laurel literário do Planeta, o Prêmio Nobel de Literatura.
Em seu discurso, fez questão de afirmar: "Eu não aprendi nos livros nenhuma receita para a composição de um poema: e não deixarei impresso nem sequer um conselho, modo ou estilo para que os novos poetas recebam de mim alguma gota de suposta sabedoria." E mais: "A poesia é uma ação passageira ou solene em que entram por medidas parelhas a solidão e a solidariedade, o sentimento e a ação, a intimidade de alguém, a intimidade do homem e a secreta revelação da Natureza."
Um "grande poeta ruim" - Essa visão comezinha da poesia como expressão da realidade (seguida no Brasil por Ferreira Gullar em seu célebre Poema sujo) tornou Neruda desde a adolescência até a morte (por desgosto com a queda de Allende e a ascensão dos brucutus fardados de Pinochet ao poder) alvo de elogios incontidos e execrações furibundas, ambos quase sempre exagerados. Outro poeta e Prêmio Nobel, o espanhol Juan Ramón Jiménez, disse ser ele "um grande poeta ruim" - definição que nos devolve ao paradoxo do início deste texto. A inquietante desigualdade de seu estro até hoje surpreende e mobiliza os exegetas. O poeta espanhol Rafael Alberti, no prólogo que escreveu para uma antologia intitulada Tesouros da poesia castelhana, disse que "sua imaginação sem limite o levou a alcançar a onda mais alta, a preamar infinita." Seus detratores, segundo Jorge Edwards, viram desprezo pela erudição onde havia apenas "a desconfiança diante do conhecimento especulativo", que o levava a não dar a devida importância a exploradores da metafísica na poesia, como seu sempre citados antípodas Vicente Huidobro, chileno como ele, e o argentino Jorge Luis Borges.
A verdade é que o homem diante de quem a fadista portuguesa Amália Rodrigues se ajoelhou no Rio de Janeiro, perante Jorge Amado e Zélia Gattai, para ouvi-lo recitar não era o espírito simplório que ele gostava de exibir. Professor de francês em Santiago na adolescência, diplomata pela vida inteira, senador eleito pelas províncias de Tarapaca e Antofogasta (em 1945), pré-candidato (que renunciaria) à Presidência da República (em 1969), foi amigo, entre outros, de Federico Garcia Lorca, quando o grande poeta espanhol passou por Buenos Aires onde ele era cônsul (em 1933).
Pecado maior que os maus versos de um gênio foi a forma como se aproveitou desse gênio para apregoar as falsas virtudes da brutal ditadura stalinista, mas mesmo nesse proselitismo do Mal tido como Bem conviveu com parceiros de escol, caso de seu amigo Diego Rivera, o grande muralista mexicano, do dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht e do filósofo francês Jean-Paul Sartre. Sobre os micróbios dessa enfermidade política contraída na nobre causa da oposição à Falange franquista na Guerra Civil Espanhola, que abraçou quando morava em Barcelona, paira o espírito do cantor da Natureza, do poeta do amor (que em seu livro de estréia já escrevia "amo o amor que se reparte / em beijos, leito e pão"), do mar ("o Chile é uma longa costa sacudida por terremotos e exposta à cólera do oceano mau chamado Pacífico", segundo Jorge Edwards), da amizade (que ele cantou em versos como "eu quero que todos vivam em minha vida / e cantem em meu canto"), da solidariedade (lembrem-se do refrão "já não estás só, Stalingrado") e, por fim, da reconciliação (no fim de sua vida, um detrator queixou-se que ele se reconciliara até com a Coca-Cola). Restou sobretudo o artífice magnífico das palavras, capaz de versos que se tornaram eternos como o refrão de Uma canção desesperada: "posso escrever os versos mais tristes esta noite".
Outro verso-síntese dele: "Que outro se preocupe com os ossários...Eu tenho frente a mim somente sementes, desenvolvimentos radiantes e doçuras" num poema intitulado A vida. O ex-adolescente que escreve estas linhas pensou que ele estava destinado a ser um poeta para iniciantes na vida, mas está descobrindo neste seu centenário que o poeta que conseguiu se destacar sendo contemporâneo na fértil e rica poesia em castelhano de nomes como os espanhóis Federico Garcia Lorca, Luís Cernuda, Rafael Alberti, Pedro Salinas, Jorge Guillén e Vicente Aleixandre (Prêmio Nobel de 1976), os mexicanos Octavio Paz e José Gorostiza, o cubano Lezama Lima e o peruano César Vallejo, não pode ser julgado apenas pelos deslizes que cometeu, que, aliás, dão um toque de original impureza a sua vida. Pois, como o poeta cujos versos foram traduzidos para o inglês e musicados e cantados por Luciana Souza em seu último CD (Neruda, lançado nos EUA), deixou escrito, no poema A verdade, do Memorial de Isla Negra: "Vos amo idealismo e realismo, / como água e pedra / sois / parte do mundo / luz e raiz da árvore da vida."
Um colega dele, o mineiro Affonso Romano de Sant'Anna, escreveu, após comer um "caudillo de congrio", iguaria que consagrou em seus versos, num restaurante chamado Mesón Nerudiano e visitar sua Sebastiana, em Valparaíso, no litoral chileno: "Vivem dizendo por aí que a poesia não serve para nada. E, no entanto, o Chile não seria o mesmo sem Neruda". Nem o mundo, poeta, nem o mundo!