Recebo
da Romênia carta de professor que me pede consiga para ele exemplar do romance
"O casamento", de Nelson Rodrigues, que deseja usar juntamente com
"Dona Flor e seus dois maridos", como bases de um seminário sobre
literatura a se realizar na Universidade de Bucarest. Por causa disso, reli o
romance de Nélson, lançado, com enorme sucesso, em 1966. Procurei ler a lista
de livros mais vendidos - que eu então organizava n'O Globo do Rio de Janeiro -
e lá encontrei, na edição desse jornal de 17 de setembro de 66, a
indicação: "Dona Flor e seus dois maridos", de Jorge Amado, 1º
lugar; "O Casamento", de Nélson Rodrigues, 2º lugar. O primeiro
ocupava essa posição havia seis quinzenas. O de Nélson, duas. Romance do Rio
de Janeiro era "O casamento" o perfeito retrato de um tempo e de um
lugar, transcendendo, porém, de cara, esse tempo e esse lugar, pois desnudava
os personagens de todas as suas roupas (a roupa física, moral e espiritual) e
sabemos que, sem roupa, o homem toca o fundo mesmo de sua transitoriedade
civilizada. Tiremos o enfeite, o de fora, o que passa, o efêmero, e o ser
humano surgirá nu. Virá à tona o que se nivela na morte, no amor do
dia-a-dia, no desejo de conquistar uma liberdade e uma independência que nos
permitam romper as barreiras. Reconheçamos que, no âmago, Nélson Rodrigues
era um moralista, no bom sentido da palavra. Seu moralismo, sendo autêntico e
intenso, funcionava como de um ex-seminarista - e aí tenho experiência pessoal
no assunto - que, ao descobrir que nem tudo é puro no mundo, pode achar que
tudo acabe por ser impuro. Mas a presença de uma aspiração à pureza está
ali, presente, forte, indestrutível. O que Nélson Rodrigues desejava, que era
a pureza absoluta, era impossível. E eu o colocaria ao lado de Teilhard de
Chardin, para quem o homem ainda não está nem completo nem perfeito. Há que
torna-lo melhor. Há que apressar as hominização. Se a noiva peca - e seu pai,
seus parentes, suas amigas, seu antigo apaixonado, seu médico - se todo o mundo
peca no romance "O casamento" - o importante é que nele predomina um
sentimento do pecado, que todos os personagens da história entendem como tal.
Ao receber o pedido agora do professor romeno, ocorreu-me que valeria a pena
fosse "O casamento", de Nélson Rodrigues, reeditado neste começo de
um novo milênio.