Entrevista a Simon Khoury

Eunice K. Pacelli

Um dos últimos livros de Simon KhourySimon Khoury memória viva da Música Brasileira e do Teatro Brasileiro e Enciclopédia viva do Cinema. Simon Khoury tem um espírito de muito humor, prima pela descontração, amizade e simpatia encantando seus entrevistados, atores e músicos, pois seu conhecimento da música brasileira assim como a música de todo o mundo é incomensurável. Os entrevistados se abrem, revelando-se inteiramente ao charme, perspicácia e inteligência do entrevistado.

Simon, por que a sua ligação com a Música Brasileira, este amor, esta dedicação, este interesse pela nossa música?

Como a mamãe fundou a Rádio Eldorado e a dirigiu, e foi a pioneira na Freqüência Modulada aqui no Brasil, ela me conduziu ao rádio. É assim, quando o pai é marceneiro, o filho torna-se marceneiro... O pai é advogado, o filho é advogado...Então eu comecei a me interessar por rádio. A Rádio Eldorado era uma rádio muito elitizada. Àquela época, a Rádio Nacional estava em primeiro lugar em audiência, como a Televisão Globo hoje. A nossa rádio, a Eldorado, estava em segundo lugar, dirigida a um público classe A. Eu comecei a me interessar pelos grandes concertos, pela música instrumental, pela música de filmes, então foi um passo. Eu trabalhei na Rádio Jornal do Brasil fazendo entrevistas com grandes atores, com os músicos, obviamente eram músicos brasileiros. Aquela informação nós já a tínhamos dentro de casa, pois a classe média conhecia de cor, todos os sucessos do carnaval. A classe média tinha uma noção precisa da música popular brasileira. Então, eu, pertencendo à classe média, tinha que saber quem era, inicialmente, Orlando Silva, depois, Altamiro Carrilho, Cauby Peixoto, até os dias de hoje.

Você, grande conhecedor da música brasileira, mas igualmente da música no mundo, possuidor de grande sensibilidade, em pequeno estudou piano, e desenvolveu o dom pela música, pela arte, sua alma vibra no reconhecimento da Música, esta sua dedicação pela nossa música seria uma forma de resgatar os nossos valores?

É... quando eu trabalhava na Rádio Jornal do Brasil eu fui fazer uma matéria sobre um flautista muito importante, do começo do século, o Patápio Silva. Uma das primeiras entrevistas que fiz foi com o Pixinguinha... Então, a gente quer saber tudo a respeito deles. Eu me interessava pela vida dos entrevistados, no caso do Pixinguinha, eu perguntava às pessoas que o conheciam, ao filho, aos admiradores, aos artistas com os quais o Pixinguinha trabalhou, fez arranjos... e as informações recolhidas eram todas desencontradas, porque se eu for atrás da crítica. Olha só, em 1927 ele foi acusado de ser jazzista, de copiar a música norte-americana, quer dizer; uma estupidez. Mas esta crítica mentirosa fica para sempre, na enciclopédia, nos jornais... No momento que eu vou conversar com o Pixinguinha e toco neste assunto, eu vou descobrindo o certo. Prefiro acreditar - se for o caso - na inverdade do artista do que na do jornalista. Aprendi que é muito mais importante você próprio entrevistar a pessoa que ouvir falar dele. Por exemplo: coleções de música; um exemplo é o da Editora Abril, muito importante, especializada, tendo ganho muito dinheiro com isso, entretanto as matérias eram realizadas por foquinhas, que entrevistaram grandes nomes. Resultado: muita gente recebeu informação errada. Vou dar um exemplo, conversando com o Luiz Gonzaga, ele afirmou que não era o autor da música "O Cheiro da Carolina", xoteo que fez sucesso no Brasil inteiro. Ele tinha comprado esta música do João do Valle. Quer dizer, se você for atrás das enciclopédias, encontra erros. Conversando in loco, na casa da pessoa, observando os objetos dela, a família, a maneira como ela olha para os filhos, para a empregada, suas coleções, seus tapetes, suas cores, os quadros, isso tudo ajuda a compor a personalidade de cada artista.

Fale sobre a sua obra literária.

Os dois primeiros livros, sob o título de Atrás da Máscara, reuniam 14 atores, 7 entrevistados em cada volume, e saiu pela Editora Civilização Brasileira. Existe uma série intitulada Bastidores, realizada por várias editoras; 2 volumes pela Letras e Expressões, 4 pela Editora Leviatã, mas agora, com o patrocínio da Brasil Telecom e com o apoio da Montenegro & Raman, a série se transformaria numa coleção atualizada do que eu já tinha e das entrevistas inéditas. Então eu tenho a entrevista do Paulo Autran, desde o início de sua carreira, mas a vida continua e, recentemente, ele, o maior ator do Brasil e, por coincidência, em 2002, ele faz o maior sucesso de sua carreira tanto é que ele admite que é realmente o seu maior papel, nesta peça Visitando o Senhor Green. Então eu atualizei as entrevistas, das que eu tinha, e tenho muitas inéditas como a de Madame Morineau, que foi um marco, e a de Dulcina de Moraes, que são a base do Teatro Brasileiro. Algumas, infelizmente não consegui fazer, não houve tempo, perdi o Procópio Ferreira, não poderia ter feito com o João Caetano, obviamente, e outro muito bom também, o Jaime Costa, mas desde o teatro da década de quarenta para cá, como por exemplo, a Aimée, ela é um nome que hoje, pouca gente sabe quem é. Só que ela, durante 20 anos, lotava o Teatro Rival dividindo com Alda Garrido o sucesso, cada uma brilhando por seis meses, naquele teatro. E ninguém lembra, o jovem de hoje não sabe. O Brasileiro tem memória curta e a Imprensa, de um certo moda, não colabora, não ajuda. Seria uma obrigação da Imprensa divulgar. Por exemplo, nos Estados Unidos morreu o compositor Richard Rodgers, a televisão americana divulgou no mercado, foi aos lares tradicionais, às casas pobres, a todo tipo de local. O povo todo conhecia, de cor e salteado a obra dele. Ele compôs a trilha sonora de vários filmes, como A Noviça Rebelde, Carrossel, Assassinato na Décima Avenida,Rntre dois carinhos, South Pacific, Oklahoma, só para lembrar, Rodgers é o autor de clássicos como Manhattan, Blue moon, With a song in my heart, Isn`t romantic, The lady is a tramp? Aqui não acontece o mesmo.. Morre uma pessoa importante e ninguém dá destaque ao fato. Por exemplo: morre Dilermando Reis no mesmo dia em que morreu Errol Garner; as manchetes destacaram apenas o desaparecimeno do americano. Valdir Azevedo faleceu e caiu na burrice de morrer no mesmo dia em que o Frank Sinatra vinha ao Brasil. Então, todas as manchetes divulgavam a vinda do Sinatra e, numa simples coluna de falecimentos havia a citação: Faleceu Valdir Azevedo, músico brasileiro exímio intérprete de cavaquinho. Só. Neste quadrilátero, Música brasileira, música do instrumental e do mundo, teatro e cinema, representando uma parcela relevante do que consideramos a Arte. Naturalmente, seu espírito de grande sensibilidade abraçaria a Arte na sua forma integral, pois você é igualmente um apreciador das obras de arte, pinturas, esculturas, dos museus pelo mundo, mas você enfocou, direcionou sua atenção para este quadrilátero.

Você se qualifica como enredado neste quadrilátero, ou você gostaria de ter asas e fazer algo mais dentro da arte?

Não haverá tempo para fazer algo mais. Das 638 entrevistas que já tenho, ainda não publiquei o material que possuo sobre os grandes músicos. Em relação aos atores já estamos conseguindo realizar um trabalho, faltam uns 20 livros baseados nessas entrevistas ora existentes. 10 foram lançados no dia 26 de agosto de 2002 mas o trabalho, a coleção continua. Mas, no momento em que você entrevista um artista que tenha nascido em 1900, ele irá falar sobre o que era o Brasil e no mundo nas décadas de 20, 30, 40, 50, 60. Conversando com pessoas, inclusive algumas muito cultas, principalmente as mais ligadas ao teatro, que são muito cultos, muito preparados, eles discorrem sobre a política, sobre a beleza, sobre os grandes momentos literários do mundo, sobre a arte, a pintura... minha cultura foi alicerçada mais em cima destas informações que eu tive, nessas pessoas importantes que fizeram a arte brasileira. Eu soube da existência de um Botticelli por causa do ator Carlos Kroëber, eu tomei conhecimento da obra de Vivaldi devido ao Paulo Autran. Debrucei-me em Thomas Hardy por sugestão de Darcy Ribeiro. Eles foram fazendo com que eu adquirisse cultura, um pouco, pelo menos. Se houvesse espaço nos jornais para falar sobre a vida dos grandes nomes do teatro e da música brasileira, se alguém se preocupasse em estudar a trajetória desses artistas, ia saber mais sobre a história do Brasil e do mundo. Principalmente a história do Brasil.

Quem é o seu pai, qual era a sua relação com o seu pai? Que recado você daria a seu pai (falecido em 1988)? Que influência teve ele na sua vida?

Papai, nascido no Líbano, em 1898, chegou ao Brasil com uma mão na frente a outra atrás, fugido de uma guerra, a do Líbano, que estava sendo dominado pela Turquia, ele era sargento, muito bem dotado para as ciências exatas... Ordenaram-lhe que sacrificasse, que matasse três desertores libaneses. Papai que não tinha a coragem de matar uma mosca - igual o Serra que não consegue matar um mosquito, eles têm muito bom coração - então papai fugiu com esses três desertores, e foram para a Argentina, clandestinos de um navio. Quando o navio aportou em Salvador, ele se apaixonou pela Bahia, e não conhecendo uma só palavra de Português, tendo no bolso o equivalente a R$ 20,00, deu início a uma carreira de mascate, batendo de porta em porta, comprando objetos e os revendendo um pouco mais caros para obter algum lucro, conservando os que tinham alguma importância cultural. Aprendi com ele esta coisa de desbravar, pois quando você enfrenta um país estranho, sem conhecer sua língua, seus hábitos, e conseguir reunir uma família, educar os cinco filhos em ótimos colégios, transformando-se no maior prateiro do Brasil, tendo construído uma fábrica de objetos de prata. Toda a alta sociedade, as pessoas de bom gosto transformaram-se em suas clientes. Ele fabricava bandejas, jarras, cinzeiros, galos de briga, balangandãs... com isso ele pode dar uma educação digna aos filhos.

Um recado para seu pai, se ele pudesse estar a ouvi-lo.

Papai respondia a todos os meus irmãos quando o chamavam, assim: - O que é minha filha? O que você quer, meu filho?. Eu, como era o mais velho - para o árabe, é muito importante que o primeiro filho seja homem, papai me respondia - o que é yaouni? Eu perguntei a mamãe o que queria dizer Yaouni . A tradução é: "luz dos meus olhos"

E a mensagem que você dá a ele?

Continua me enxergando, papai (eu sou a luz dos seus olhos). E a sua mãe, a Dona Anna Khoury (falecida em janeiro de 1994) Ela foi a responsável direta pelo meu amor às artes. De cara, ela ia me buscar no colégio interno (eu fui educado no internato, em colégios de padres) para assistir a filmes sobre a vida de Mozart, Chopin, Schuman, Berlioz, me fez estudar piano por 3 anos. Eu não tinha talento para a música. Tenho um ouvido muito bom, cheguei a levar um beijo do Antonio Carlos Jobim porque eu corrigi uma de suas canções, quando o entrevistava na Rádio Jornal do Brasil. Ele tocou uma música intitulada Mojave, e eu notei que ele tocara alguns acordes de forma diferente e eu chamei a sua atenção dizendo que não estava certo. Ele ficou surpreso, então eu cantei a sua música de forma correta, e ele, agradecido me beijou. Então eu tenho o ouvido privilegiado mas não tenho o dom para fazer a música, apenas o de ouvir a música.

Mas você é autor de algumas músicas. Quais são elas?

Ah, eu faço música de boca, quando estou a caminhar pela praia...

Você é autor de muitas músicas, presentes em alguns discos...

Eu fiz 12 chorinhos, gravados pelo Sebastião Tapajós, este grande violonista de renome internacional, pelo Hermeto Paschoal, que toca qualquer instrumento, e bem, pelo exímio pianista Gilson Peranzzetta, pelo maior acordeonista de todos os tempos, Chiquinho do Acordeom, e pelo flautista Altamiro Carrilho, então eu tenho esse privilégio de ter gravadas estas doze músicas que fiz, sem compromisso, foram gravadas porque eles gostaram.

Continua a falar sobre a sua mãe.

Mamãe, sendo uma mulher pioneira, tendo fundado diversas rádios, era feminista, sem ter noção do que significava ser feminista, jamais perdeu a feminilidade, ao contrário era um exemplo de beleza e elegância para as mulheres. Já tendo fundado a Rádio Eldorado, no Rio, em São Paulo e em Goiás, ela se aproximou do Nascimento Britto, presidente do Jornal do Brasil, declarando que o futuro do mundo estava na Freqüência Modulada. Procurou, igualmente, a Roberto Marinho, para tê-los como sócios no empreendimento que pretendia fazer. Mas como no Brasil a mulher ainda é vista em segundo plano, este dois grandes não lhe deram muita importância, então ela decidiu iniciar a Freqüência Modulada sozinha tendo sido a pioneira no Brasil, fundando a Rádio Imprensa FM, inaugurada em 1954, sendo a primeira rádio FM da América Latina. Dona Anna Khoury, mamãe, teve a visão, o bom gosto de descobrir este caminho (das águas).

Um recadinho para ela.

Mãe, eu estou precisando da senhora, pois a barra está tão pesada aqui embaixo...

Simon, tendo realizado durante todos esses anos tantas entrevistas, todas com o coração, seria interessante deixar um museu dedicado à música e ao teatro brasileiros... Ele seria chamado Museu Simon Khoury e conteria o resultado de seus "alegres" esforços. Seria algo justo e plausível, pois o mundo ganharia... De toda esta experiência, quais as grandes amizades que você conseguiu manter, quais as boas lembranças que se solidificaram ao longo dos anos?

Como eu fiz 638 entrevistas, obviamente eu tenho 638 amigos. Como estes 638 são casados, têm filhos, no momento em que eu fui ( e sou) amigo do pai torno-me amigo da família. Multiplico, pois, este número, 638, por cem. São amigos que admiravam o Silvio Caldas, que admiram o Paulo Autran... Quem admira a Fernanda Montenegro, o Jorge Dória, a Irene Ravache... obviamente, vendo um livro sobre a Irene Ravache, vai se tornar meu amigo, por uma questão de simbiose. As minhas amizades teriam que ser ligadas ao mundo artístico. No momento em que eu entro na casa de alguém, realizando as entrevistas em várias etapas, de 3 horas, depois, 5, 8 horas, eu fico com cada um deles, umas 48 horas, então muitas amizades se iniciaram a partir do momento em que eu fiz o primeiro contato da entrevista e que publiquei a entrevista. Então é um mundo sensacional, fabuloso, pois os artistas me deram a subsistência minha. A gente poder viver com dignidade. Eu faço um trabalho agradabilíssimo... Conversando e ouvindo eu estou aprendendo. Mamãe disse uma vez que é muito mais importante perguntar do que responder.

Simon, faça uma pergunta para você mesmo.

Quando é que você pretende parar de entrevistar? Nunca.

Qual foi o momento mais bonito da sua vida?

Depende... Na área profissional foi quando eu fiz um... Eu achei que tinha talento para o teatro. Estando ligado à música, trabalhando nesta área... que seria a continuação do que me foi proposto pela família, eu desejava fazer teatro e fiz o curso de ator com uma atriz fabulosa, a Dulcina de Moraes, um marco. Esta mulher tem uma importância capital, foi um divisor de águas. Houve um teatro antes de Dulcina e outro pós Dulcina. Ela foi a primeira atriz que conseguiu lotar o Teatro Municipal, provocando filas e filas de espera para assistir a César e Cleópatra de Bernard Shaw. Dulcina lançou autores importantíssimos. Foi ela quem lançou Bodas de Sangue de Federico Garcia Lorca, assim como O Sorriso da Gioconda, de Aldous Huxley. Aprendi teatro com ela, fiz algumas experiências em televisão, trabalhei em 10, 12 peças, mas só podia fazer teatro com amigos, não foi uma carreira profissional. Eu tinha que me ausentar, excursionar, mas não podia largar o meu trabalho na Rádio Eldorado, na Rádio Imprensa, na Rádio JB onde trabalhei por dez anos, fase muito importante para mim, tendo escrito igualmente para o Jornal do Brasil, que publicava no dia seguinte, na íntegra, as entrevistas radiofônicas que eu realizava na véspera, com cada grande artista. Eu não podia seguir a carreira de ator. Quando a carreira do ator não dá certo, por qualquer motivo, tendo ou não tendo talento, tendo tido ou não oportunidade, quando ele deixa de ser ator, às vezes, o perigo - alguns, eu estou generalizando - está em ele querer se transformar em crítico. A crítica, pois torna-se uma crítica dividida, nunca é uma crítica isenta, dificilmente vê-se uma crítica construtiva, cada crítico tem os seus preferidos. Outra coisa desagradável é quando o ator que não dá certo como ator, resolve ser professor. O que eu acho difícil, o cara não conseguiu fazer, atuar, como é que ele vai conseguir ensinar aquilo que ele não conseguiu fazer? Meu trabalho não é realizado apenas pelos lindos olhos dos artistas. Eu tenho uma ambição, claro. Qual é? Daqui a cinqüenta, cem, trezentos anos, eu serei eternizado junto com eles. Esta é uma grande ambição. Quando eu estou com saudades da Elis Regina, que nos deixou em 82, eu ouço a entrevista que fiz com ela, de seis horas de duração, e fico recordando. Quando ouço a da Elizete Cardoso, é a mesma coisa. Quando estou com saudades da Dulcina de Moraes, faço a mesma coisa. Então eu estou para sempre junto com eles. Quando perguntarem: "Quem é este carequinha, tal, tal, aquele bigodão, que tinha o bom gosto de entrevistar essas pessoas importantíssimas da cultura de um país?" Eu tenho pois esta ambição, esta veleidade, esta vaidade, não a de ficar reconhecido mas pelo menos eu estou junto com a memória, junto com eles, graças a eles.

Simon, eu acho que você está certíssimo em deixar esta obra para o mundo. Mas acho que está sendo um pouco egoísta em não escrever sobre você mesmo. Quero colocar aqui um desafio: o de fazer com que você escreva um livro, com as suas experiências pessoais, pois você sempre contou casos engraçadíssimos, (transformou muitas realidades colorindo-as e criando em cima delas), às vezes, digo, muitas vezes, repetindo-os, mas sempre mostrando-os cada vez mais vivos e divertidos, arrancado risadas de todos, mesmo daqueles que já os haviam ouvido repetidas vezes. O tempo passa e a memória se curva à ele. Não só o tempo passa como passa e vai apagando a vida. Pode ser que uma história como a do Sérgio Micuíba, (a galantear uma passante, se viu preso pela capa, na porta do prédio etc., o pum que uma sua namorada deu, bem alto, quando à mesa, durante um jogo de cartas, e ele, se levantando, pediu desculpas dizendo que o pum era de sua - a dele- responsabilidade). Histórias todas bem fantasiadas por você podem se tornar embotadas com o tempo. Você não mais as conta a ninguém... Substitui por outras. Resumindo pois, quando um livro engraçado, com suas experiências e memórias?

Dá uma olhada no prefácio que o Carlos Kröeber escreveu para o livro Bastidores III, em que um dos meus entrevistados é o Ary Toledo. O Carlão, grande ator e amigo meu, citou o famoso escritor e filósofo francês, Voltaire que diz que se conhece um homem muito mais por suas perguntas que pelas respostas. Então eu acho que você pode saber quem eu sou, lendo os meus livros. As perguntas que faço têm muito de mim.

Isto é verdade, mas nós gostaríamos dos seus casos pessoais, por escrito!

Livro autobiográfico não dá certo porque o autor não se desnuda, não se expõe, não mostra suas dúvidas, erros, passos em falso, ele quer mostrar apenas o que fez de melhor.

Azar...

Eu não gosto do eu... eu... eu... Eu gosto de ser provocado, instigado, como eu faço quando entrevisto. Eu gosto de provocar, instigar, de me aventurar, essa magia da entrevista, este mundo que você penetra, de pessoas tão diferentes, a solidão de cada um, a alegria de cada artista, a perspectiva de cada um. Tudo isso é muito importante. Eu prefiro continuar perguntando. Mas este é um desafio.

Eu exijo que você faça este livro.

Você pode fazer isso, se você fizer comigo, eu topo a parada. Dos dezoito 18 livros já publicados, no dia 26 de agosto (2002) lançamos dez, numa grande festa no Clube dos Marimbás. Mas eu ficaria feliz se conseguisse realizar a publicação de quarenta volumes. Neles eu teria 120 atores. Aí eu fecharia mais ou menos o círculo. Nestes dez recentemente lançados não temos a Fernanda Montenegro. A entrevista dela já está pronta, e continua com o Juca de Oliveira, o Raul Cortez, Theresa Raquel, grandes nomes, inclusive atores novos, como o Matheus Nachtergaele, que é um ator extraordinário, o Selton Melo, que é um ator muito interessante, além de alguns novos, de uma geração mais próxima de nós, como o Diogo Villela, a Maria Padilha, mas tem muita gente nova surgindo aí, graças ao fenômeno televisão, ao fenômeno teatro. A coleção então continua e se um dia eu consegui acabar estes quarenta volumes sobre o teatro, imagine um livro de seiscentas páginas, com 4 entrevistas. Só este ano eu escrevi seis mil páginas.

Estamos em agosto de 2002. Você tem pouco mais de 25 anos... Talvez com 120 você não possa mais trabalhar. Como fica a sua obra, você deixaria um pedido para que alguém dê continuidade ao seu trabalho?

Minha sobrinha Ana Elisa Yasmin Correia de Araujo Aquino. Eu já doei tudo para ela, e para o seu marido Sérgio Aquino, toda a coleção de discos raros, de entrevistas etc e desejo trabalhar com eles, para colocarmos tudo em CD, porque as fitas, graças a Deus, estão muito bem conservadas - eu morei durante muito tempo no Cosme Velho, a temperatura lá é agradável, o que evitou o problema de ressecamento do material. Um dia eu pretendo formar uma equipe para divulgar este material, divulgar a música... Conhecer a obra do Orlando Silva, do Cauby Peixoto, do Silvio Caldas, a da Aracy de Almeida, Aracy Cortes, esse pessoal todo que brilhou na música popular brasileira, não vai se perder porque tudo está garantido conosco aqui.

Simon, uma pergunta que a senhora Zora Seljian também gosta de fazer, e eu vou observar bem a sua resposta que é para não lhe dar um cascudo... Quem é Deus para você?

Ah, eu não sei. Estou numa eterna dúvida, eu estou na expectativa. Se Deus existe eu vou para o céu direto, tenho a certeza. Sendo brasileiro a gente tem de ir para o céu. Não há outra alternativa. A gente sofre já tanto aqui...

Certa vez, quando entrevistado na televisão, você disse que é uma pessoa feliz. Você é feliz?

Sou. Apesar de tudo o que está acontecendo, esta violência, esta poluição, estas coisas terríveis que aconteceram recentemente em Praga, em Viena, (as enchentes) tudo isto é culpa dos Estados Unidos. O Japão também tem esta coisa de não dar bola para a ecologia, para a natureza. O americano é burro. Lembremos o caso dos bisontes: os americanos resolveram exterminá-los de uma região do centro norte dos Estados Unidos, para alimentar dezenas de milhares de trabalhadores que estavam construindo a estrada de ferro que ligaria a Costa do Atlântico à Costa do Pacífico, (isto nas últimas décadas do século XIX). Eles dizimaram, exterminaram, extirparam milhares de bisontes, principal fonte de alimento dos indígenas e que serviam de alimentação básica dos pumas (suçuaranas ou leão americano), assim comprometendo o ecossistema. O que aconteceu? Eles tiveram que importar bisontes do mundo inteiro para não mexer na natureza. Esta foi uma grande lição de vida.

E sobre a sua felicidade, o que você tem a dizer?

Eu perdi meu pai quando ele tinha 94 anos. Mamãe se foi quando estava com 80 anos. Quer dizer, eles viveram bastante. Eu pude usufruir deste convívio plenamente. Tenho grandes amigos. Tomar um simples café com leite na casa de minha irmã, com o marido, os filhos e netos, para mim é um bálsamo. Isto é ser feliz. Eu caminho na praia, nado, viajo, as coisas mais simples na vida são as coisas que nos fazem felizes. Água para mim é uma coisa imprescindível, o olhar, por exemplo... quem enxerga não pode ser infeliz. Eu não concebo a existência sem a vista. Tenho muita pena das pessoas cegas. Eu vou dar um conselho para Deus: acaba com a cegueira, acaba com o pus, acaba com o câncer, acaba com os políticos.

Em que peças você atuou?

Fiz temporadas com a Fernanda Montenegro, na peça sensacional, O Amante de Madame Vidal, de Louis Verneuil ou será que é do Feydeau... não me lembro. Eu só trabalhei com amigos. Com a Madame Morineau, na peça intitulada Doutor Knock, trabalhei com Paulo Autran, Tonia Carrero, Maria Pompeu, Fernanda Montenegro... Ah... fiz um filme sob a direção de Iberê Cavalcanti, em 1971, e tive o privilégio de fazer o par romântico com uma das atrizes mais importantes de todos os tempos, Glauce Rocha. O filme se chama O Dia Marcado, ainda inédito...

Você esteve atuando em Portugal e excursionou pelo Brasil...

Eu sempre trabalho com amigos. Eu não sou um ator, porque o ator faz de tudo, tem de ser garçom... eu peguei papéis ótimos, tive boas críticas, fiz doze peças. Me saí bem nas doze peças, eu não posso dizer que seja um ator frustrado. Só que o que eu mais gosto de fazer na vida é atuar. Então eu seria frustrado porque não atuei tanto quanto gostaria de ter atuado. Além disso tenho umas quatro experiências, o tal filme inédito, cujo roteiro é meu, e a direção, de Iberê Cavalcante, inédito porque a censura proibiu a sua exibição. Tratava-se de uma denúncia que eu fazia, pois, na época, certo tipo de pessoas ligadas à igreja, lá em Goiás Velho, estavam vendendo nossas riquezas (as das igrejas) para os estrangeiros a preço de banana. O artista Veiga Vale, contemporâneo do Aleijadinho, tinha peças naquela cidade, cidade estranha, lindíssima, bem povoada na época do ouro. Quando o ouro se esgotou, foi abandonada por muitos. Só ficaram os que realmente a amavam. Pouco habitada, casavam-se primo com primo. O filme é pois, um assalto a essa igreja de Goiás Velho, que contém as obras lindíssimas de Veiga Vale, um escultor maravilhoso. Aliás, quem trafica trafica obras sagradas, olha que coisa, se chama simoníaco. Eu escrevi o roteiro, a atriz principal era a Glauce Rocha. Foi o seu último filme. Ela, uma atriz extraordinária, talentosíssima e um ser humano superior ainda. Eu nunca vi uma mulher tão maravilhosa, tão genial quanto ela. Nós estávamos filmando lá (em Goiás) no Hospital Santa Genoveva e, de repente deu fome na gente, mas eram três da manhã. Tudo estava fechado. Então nós conversamos com uma enfermeira que abriu a cozinha às três e quinze para nós e nos ofereceu bananas e café. A Glauce percebeu que a senhora era muito pobre, não tinha um único dente na boca, tinha quatro filhos e a Glauce, que àquela altura estava com duzentos e dez cruzeiros (se era esta a moeda...) na bolsa, e deu tudo o que tinha para a pobre enfermeira. Na época, Glauce estava casada com um psiquiatra ilustre, profissional de mão cheia, mas irresponsável, pois me deu alta com apenas 2 meses e meio de análise quando eu era seu paciente.

Simon, além de um livro seu, com suas memórias, a partir de agora você nos deve uma biografia de sua mãe, Anna Khoury, ok?

Eu acho que não tenho capacidade de escrever sobre a mamãe. Deixo esta tarefa para você.

Você recolhe um pouco da memória de cada um de seus filhos, e todos farão justiça à ela... Simon, das 12 peças em que você atuou, que lembrança você tem da crítica?

Quando você me falou sobre a alegria, realmente eu sou uma pessoa feliz, a primeira crítica que eu tive na minha vida artística, foi em 59. Junto a um grupo de amadores atuando no Teatro Maison de France, eu interpretava um papel na peça do Plauto Soldado Fanfarrão, dirigida por outro fanfarrão chamado Justino Marzani. A grande alegria que tive foi quando, ao deparar, no Jornal O Globo, com a crítica de uma jornalista muito especial e respeitada, a senhora Zora Seljan, que metia o pau na peça, relevando que o único ator que nela se destacava era o Simon Khoury .