1. A Liturgia das Horas, nos vários Cânticos que são postos em paralelo
com os Salmos, apresenta-nos também um hino de agradecimento que tem este
título: "Cântico de Ezequias, rei de Judá, quando adoeceu e foi curado
da sua enfermidade" (Is 38, 9). Ele está inserido numa parte do livro do
profeta Isaías com a característica histórico-narrativa (cf. Is 36-39), cujos
dados realçam com algumas variantes os que são oferecidos pelo Segundo Livro
dos Reis (cf. cap. 18-20). Nós, agora, na esteira da Liturgia das Laudes,
ouvimos e transformamos em oração, duas grandes estrofes daquele Cântico que
descrevem os dois movimentos típicos das orações de agradecimento: por um
lado, é recordado o pesadelo do sofrimento do qual o Senhor libertou o seu fiel
e, por outro, canta-se com alegria a gratidão pela vida e pela salvação
reconquistada. O rei Ezequias, um soberano justo e amigo do profeta Isaías,
tinha sido atingido por uma grave doença, que o profeta Isaías declarara
mortal (cf. Is 38, 1). "Ezequias voltou o seu rosto para a parede e fez ao
Senhor esta oração: "Senhor, lembrai-vos de que tenho andado fielmente
diante de vós, de todo o coração, segundo a vossa vontade". E começou a
derramar lágrimas abundantes. Então a palavra do Senhor foi dirigida a
Isaías, nestes termos: "Vai e diz a Ezequias: Eis o que diz o Senhor, o
Deus de teu pai David: Ouvi a tua oração e vi as tuas lágrimas; vou
acrescentar à tua vida mais quinze anos"" (Is 38, 2-5).
2. Neste ponto brota do coração do Rei o cântico de reconhecimento. Como se
disse, ele volta-se antes de tudo para o passado. Segundo a antiga concepção
de Israel, a morte introduzia num horizonte subterrâneo, chamado em hebraico
sheol, onde a luz se apagava, a existência se atenuava e se fazia quase
espectral, o tempo parava, deixava de haver esperança e, sobretudo, deixava de
se ter a possibilidade de invocar e encontrar Deus no culto. Por isso, Ezequias
recorda em primeiro lugar as palavra cheias de amargura pronunciadas quando a
sua vida estava deslizando em direcção aos confins da morte: "Não verei
mais o Senhor na terra dos viventes" (v. 11). Também o Salmista rezava
assim no dia da doença: "Quando chegar a morte, ninguém se lembra de
Vós; na mansão dos mortos quem vos louvará?" (Sl 6, 6). Ao contrário,
libertado do perigo da morte, Ezequias pode recordar com vigor e com alegria:
"Os vivos são os que vos louvam como eu vos louvo agora" (Is 38, 19).
3. O Cântico de Ezequias adquire, precisamente sobre este tema uma nova
tonalidade, se for lido à luz da Páscoa. Já no Antigo Testamento se abriam
grandes clareiras de luz nos Salmos, quando o orante proclamava a sua certeza de
que "Vós não me entregareis à mansão dos mortos, nem deixareis que o
Vosso amigo veja o sepulcro. Ensinar-me-eis o caminho da vida; na vossa
presença (gozamos) a plenitude da alegria, na Vossa direita (encontraremos) as
delícias eternas" (Sl 15, 10-11; cf. Sl 48 e 72). O autor do Livro da
Sabedoria, por seu lado, jamais hesitará em afirmar que a esperança dos justos
está "cheia de imortalidade" (Sab 3, 4), porque ele está convencido
de que a experiência de comunhão com Deus vivida durante a existência terrena
não será infringida. Nós permaneceremos sempre, para além da morte, apoiados
e protegidos pelo Deus eterno e infinito, porque "as almas dos justos
estão na mão de Deus e nenhum tormento os tocará" (Sab 3, 1). Sobretudo
com a morte e a ressurreição do Filho de Deus, Jesus Cristo, uma semente de
eternidade é lançada à terra e feita germinar na nossa caducidade mortal, e
por isso podemos repetir as palavras do Apóstolo, baseadas no Antigo
Testamento: "Quando este corpo corruptível se revestir de imortalidade,
então cumprir-se-á o que está escrito: "A morte foi tragada pela
vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu
aguilhão?"" (1 Cor 15, 54-55; cf. Is 25, 8; Os. 13, 14).
4. Mas o cântico do rei Ezequias convida-nos também a refletir sobre a nossa
fragilidade de criaturas. As imagens são sugestivas. A vida humana é descrita
com o símbolo nómada da tenda: nós somos sempre peregrinos e hóspedes na
terra. Recorre-se também à imagem da tela, que é tecida e que pode permanecer
incompleta quando se corta o fio e o trabalho é interrompido (cf. Is 38, 12).
Também o Salmista tem a mesma sensação: "Eis que fizestes os meus dias
de uns tantos palmos, a minha existência, perante ti, é como um nada; cada um
não é mais do que um sopro. Cada homem passa como uma simples sombra: é em
vão que se agita" (Sl 38, 6-7). É necessário reencontrar a consciência
dos nossos limites, saber que "a soma da nossa vida como declara ainda o
Salmista é de setenta anos, os mais fortes chegam aos oitenta; mas a sua
grandeza não passa de atribulação e miséria, porque eles passam depressa e
nós desaparecemos" (Sl 89, 10).
5. No dia da doença e do sofrimento é, contudo, justo elevar a Deus a própria
lamentação, como nos ensina Ezequias que, usando imagens poéticas, descreve o
seu pranto como o piar da andorinha e o gemer de uma pomba (cf. Is 38, 14). E,
mesmo se não hesita em confessar que sente Deus como um adversário, como um
leão que quebra os ossos (cf v. 13), não deixa de o invocar: "Senhor,
estou em agonia, confortai-me!" (v. 14). O Senhor não permanece
indiferente às lágrimas do sofredor e, mesmo por caminhos que nem sempre
coincidem com os das nossas expectativas, responde, conforta e salva. É como
confessa Ezequias no final, convidando todos a ter esperança, a rezar, a ter
confiança, na certeza de que Deus não abandona as suas criaturas:
"Senhor, salvai-me e soaremos as nossas harpas no templo do Senhor, todos
os dias da nossa vida" (v. 20).
6. A tradição latina medieval conserva deste Cântico do rei Ezequias um
comentário espiritual de Bernardo de Claraval,
um dos místicos mais representativos do monaquismo ocidental. Trata-se do
terceiro dos Sermões vários, em que Bernardo, aplicando à vida de cada um o
drama vivido pelo soberano de Judá e, interiorizando o seu conteúdo, escreve
entre outras coisas: "Louvarei ao Senhor em todos os tempos, isto é, de
manhã até à noite, como aprendi a fazer, e não como os que te louvam quando
tu lhes fazes o bem, nem como os que crêem durante um certo tempo, mas no
momento da tentação cedem; e como os santos, direi: Se recebemos o bem da mão
de Deus, porque não devemos aceitar também o mal?... Assim estes dois momentos
do dia serão um tempo de serviço a Deus, porque à noite permanecerá o
pranto, e de manhã o eco da alegria. Mergulharei no sofrimento à noite a fim
de poder gozar, depois, a alegria da manhã" (Scriptorium Claravallense,
Sermo III, n. 6, Milão 2000, págs. 59-60). Por conseguinte, a súplica do rei
é lida por São Bernardo como uma representação do cântico orante do
cristão, que deve ressoar, com a mesma constância e serenidade, tanto nas
trevas da noite e da provação como na luz do dia e da alegria.